sábado, outubro 14, 2006

Pantomimas

O fato de o PT ter passado a vida criticando a política econômica que adotou quando chegou ao poder seria o maior exemplo nacional da nova tese que rola por aí, a da irrelevância da política no mundo do capital imbatível. A política inutilizada seria uma contrapartida da história encerrada do Fukuyama, ambas vítimas do mesmo algoz. Segundo a tese, tanto fazia eleger o Lula presidente quanto só abrir um escritório do pensamento dominante em Brasília, com o Meireles de gerente, e o resultado na política econômica, e portanto o governo, seriam os mesmos.
Não sei se a tese está certa ou é só o simplismo do momento, mas ela nos permite pensar na política sem aplicação prática como apenas jogo histriônico, concurso de personalidades e recursos financeiros — enfim, como tudo que ela é e a gente já sabia, só que agora sem o atenuante de servir para alguma coisa. Mas a política nacional como mera pantomima, enquanto os destinos da nação se decidem em outra parte, não deve abalar nossas convicções democráticas ou nos isentar do dever cívico de apertar conscientemente o botãozinho. A irrelevância da política não significa a irrelevância do voto. Mesmo votando em pantomimas está-se votando em alguma coisa — não no governo que o votado faria, pois este já vem pronto, mas no que o seu personagem representa. E se o que ele representa é uma ficção, não faz mal. De acordo com a tese, tudo em volta ou fora do caroço duro da submissão à realidade econômica única é, no fim, metáfora.
Visto assim, o grande valor político do Lula é o que ele simboliza na pantomima, o seu valor metafórico. Seu personagem não é significativo só pelas razões sentimentais óbvias - ex-retirante, cara que veio de baixo e venceu etc — mas pela didática comparação com as outras figuras, atuais ou tradicionais, do nosso teatro eleitoral. Sua origem proletária contrasta com uma história feita até agora de cima para baixo, com escassa participação popular, e com a rotina histórica da espoliação do Brasil pela própria elite. Seus problemas com a sintaxe e a gramática o contrapõem às gerações de doutores que construíram a sociedade mais desigual do mundo sem cometer um erro de concordância. E se nada disso é muito relevante para a vida real, leia-se econômica, do país, não deixa de ser divertido — ao nível da caricatura mais primária, da pantomima para criança — ver o desespero da nobreza inconformada com a evidência de que o barbudo malnascido vai ficar, outra vez, com a princesa. Falta dizer que, sem escapar da submissão às regras do capital financeiro internacional, este governo conseguiu começar um processo de transferência de renda, falho e insuficiente, mas inédito, no país. Mesmo irrelevante (se aceitarmos a tese) a política ainda pode fazer uma diferençazinha.


Luiz Fernando Veríssimo

sexta-feira, agosto 04, 2006

Cinismo e celebridade política

Dois documentários polêmicos foram lançados recentemente, revelando os bastidores de campanhas eleitorais no Brasil. Entreatos (2004), de João Moreira Salles, registra a campanha vitoriosa de Lula na eleição presidencial de 2002, através de material exclusivo como conversas privadas, reuniões estratégicas, telefonemas, traslados, gravações de pronunciamentos, programas eleitorais e até mesmo do momento em que Lula é informado da vitória, filmado numa câmera portátil pela filha do senador Aloizio Mercadante, ex-aluna de Salles, pois o acesso da equipe havia sido negado. Assistindo ao filme não é difícil perceber a similaridade da rotina do candidato com a de uma celebridade, através dos movimentos de aproximação e distanciamento em relação ao “comum”, promovendo a circulação entre projeção e identificação das massas com o líder, que transita entre a trivialidade e a mitificação. Em cena, o Lula mítico se reveza com um Luiz Inácio da Silva de mentalidade de classe média, pragmático e bastante vaidoso. No filme ainda é possível constatar a eficiência com que Lula utiliza seu carisma e capacidade de comunicação com o povo para confirmar o indissociável aspecto cênico da política.

A mise-en-scène de Entreatos, ao invés de ilustrar uma idéia pré-estabelecida, uma tese já pronta, exprime, tanto quanto possível, a vida e o caráter do candidato e seu estado psicológico durante a campanha eleitoral. João Moreira Salles nos mostra a visão que ele tem de Lula extraída das 240 horas de material que filmou. Não cria um personagem definitivo e raso, pelo contrário. Essa postura que tem diante do cinema e da vida está evidenciada no último plano do documentário, talvez o mais belo e inteligente da história do cinema brasileiro contemporâneo, quando Lula, agora presidente do Brasil, é engolido pela massa de jornalistas e fotógrafos ávidos por sua imagem ao mesmo tempo em que a câmera de Salles, num movimento inverso, afasta-se de todos, evidenciando assim a passagem de uma etapa da história pessoal de Lula para uma outra, agora pública, cheia de esperanças e incertezas. (Fonte: Revista de Cinema Cine Imperfeito – http://www.cineimperfeito.com.br/especialdomes.asp).


O lançamento do filme foi simultâneo ao de outro documentário (ambos foram concebidos como projetos complementares), o belo Peões (2004) de Eduardo Coutinho, que mostra o outro lado da mesma história, dos ex-metalúrgicos que, como o presidente, militaram nas greves do ABC no final dos anos 70, mas continuaram afundados na pobreza e no anonimato.
O segundo documentário a que se fez referência no início é ainda mais polêmico, merecendo maior atenção, por se aproximar mais da crítica que se pretende desenvolver neste artigo: o reconhecimento do exercício da política e de seus cargos e posições, especialmente pelos mais jovens, como local de uma “boa-vida”. O espetáculo tem atraído a adesão de muitas pessoas para a arena política principalmente pela posição de destaque que parece oferecer, da celebridade e sua vida de glamour, repleta de vantagens e prazeres. É uma das constatações que se pode tirar de Vocação do poder (2005), documentário de José Joffily e Eduardo Escorel. Dos bastidores da campanha de seis candidatos a vereador estreantes nas últimas eleições na cidade do Rio de Janeiro, a identificação radical da superficialidade e frivolidade dos mesmos na disputa pelo cargo público, impulsionada mais pelo desejo de fama do que por motivação política ou ideológica. Todo o processo eleitoral — das convenções partidárias, a panfletagem nas ruas, a apuração dos votos até a reação dos eleitos e dos derrotados — é apresentado no filme.
Pode-se argumentar que o cenário de desesperança retratado tenha sido potencializado pelos critérios de escolha dos candidatos acompanhados pela equipe de produção, dando preferência àqueles que tivessem condições de construir a narrativa desejada pelos realizadores. Outra crítica que se poderá encontrar é a de uma predisposição simpatizante ao Partido dos Trabalhadores, visto que o candidato petista Felipe Santa Cruz é significativamente distinto dos demais, com relação às suas relações cognitivas com o universo político, podendo ser injusta a sua inclusão no conjunto de críticas aqui formuladas. Acompanhando essa lógica se poderia concluir a existência de um objetivo pré-estabelecido, ao contrário do que foi falado a respeito das intenções de Salles em Entreatos. Por outro raciocínio, pode-se argumentar que a escolha dos candidatos foi plural, tendo em comum entre eles apenas o fato de estarem concorrendo pela primeira vez, e refletiria, por amostragem, um panorama realista do quadro, especialmente porque dois deles conseguiram se eleger.
Na escolha dos personagens parecem estar mapeados os arquétipos dessa configuração da comunicação política deturpada pelo exagero do espetáculo e da celebridade. A profusão de candidaturas de jovens filhos de ricos que almejam a participação na política pela posição de status social está representada, com um filho de políticos populistas da zona oeste, e um integrante de família tradicional, morador da zona sul. O caso mais dramático é o de André Luiz Filho, filho do ex-deputado federal André Luiz (cassado por envolvimento comprovado em diversas práticas de corrupção) e da deputada estadual Eliana Ribeiro. Com pouco mais de vinte anos, André Luiz confirma a suspeita de que não possui nenhuma vocação para a atividade política — podendo, entretanto, ter alguma para o poder. Mostra-se orgulhoso ao repetir que concorre para receber a herança dos votos dos pais, faz estimativas mais que otimistas em relação à votação que receberá, e no único momento em que fala de práticas políticas, refere-se aos recursos públicos de assistencialismo popular como se fossem de propriedade sua e de seus pais. Caracteriza o pai como um herói que está enfrentando o mal, personificado nos bandidos que o teriam ameaçado. Aparece discursando numa carreata de maneira cínica e rasa, repetindo o criativo slogan “vitória, vitória, vitória” ao som do tema da vitória de Ayrton Senna, como se estivesse na torcida de um time de futebol. Na sua página na Internet revela suas preferências, impregnadas do hedonismo próprio da classe de jovens ricos que buscam na política uma forma de ter uma vida ainda mais confortável:

Descrição do meu flogão: Zoação, amigos, nights, família e eu!!!!
Hobbies: Jiu-jitsu, malhar, correr de carro!
Sobre mim: Sou um cara maneiro, simpático e não de se jogar fora. Preservo muito as minhas amizades e o momento! Carpe Diem, aproveito tudo como se fosse o último momento (sic). (Fonte: http://www.flogao.com.br/andreluizfilho).


É impressionante a pujança de recursos para a sua campanha, que contou com vários carros de som e outdoors. Antônio Pedro Figueira de Mello (PSDB) também teve uma campanha cara, e é o jovem de família rica que aparece subindo favelas e panfletando nas ruas. Típico playboy carioca, chega a mencionar o berço abastado, e parece se achar merecedor do cargo de vereador pelo esforço despendido na campanha. Encara o processo como se estivesse se empenhando para passar numa espécie de concurso público. Destaque para a cena em que é abordado por um pedinte; cínico e serelepe, nega a esmola e, com desenvoltura, pede o voto do rapaz.
A pastora Márcia Teixeira (PL) é a representante da corrente evangélica que se empenha na conquista de poder eleitoral, mencionada na primeira parte do artigo. É uma das personagens que venceu as eleições municipais de 2004. Aproveitando-se descaradamente da fé e alienação de pessoas humildes, tem seu momento no filme quando perguntada se tentaria um cargo de maior importância, como o de governadora. Com um sorrisinho dissimulado, a pastora responde: “se esta for a vontade de Deus...”.
O outro candidato que se elege vereador é Carlo Caiado, do PFL. Ele representa a vitória do pragmatismo, da liderança que ganha espaço galgando os degraus da hierarquia partidária. Repete o tempo todo que está com o prefeito Cesar Maia e o deputado Eider Dantas, e parece só entender a política na sua dimensão eleitoreira, falando dela com singular vulgaridade. Quando somos convidados a entrar na casa de Caiado e conhecer sua família, descobrimos que seu pai já tinha participação na política, e mais, que a encara como um negócio como outro qualquer. Ao vermos seu pai ao lado de seu empertigado irmão mais velho analisando uma pesquisa, ficamos com a impressão de que estão investindo na carreira vitoriosa de um futuro “campeão da política” (que os recompensará por esse esforço), do mesmo modo que fariam com um jogador de futebol ou cantor. Cheio de brio e dotado de uma certa agressividade, Carlo Caiado talvez seja o personagem que melhor encarne a vocação do poder que dá nome ao documentário.
O sexto e último candidato é MC Geléia (PV), representando as classes desfavorecidas em seu abismo de alienação, ignorância e total desarticulação. Canta muito para as câmeras e parece ser o que mais enxerga o âmbito político sob as luzes do espetáculo e do entretenimento.
Vocação do poder é um triste retrato da degradação da política. Nele constatamos a extinção da preocupação com as aparências, a extrapolação dos limites do cinismo, a embriaguez na própria imanência de um real sem historicidade, onde o presente é tudo, e tudo é pragmatismo. O pragmatismo aniquila o processo de desilusão. Não se perde mais tempo deixando a luta política brutalizar seus personagens e utopias. A nova geração de lideranças não vive para mudar a política; muda para viver da política, ou nem mesmo isso; já nasce no esgoto da desilusão pragmática, formando um exército de arautos da ideologia da “exploração absoluta, da acumulação primitiva acelerada pelo terror”, como diria Debord. A contaminação da política pelo germe da celebrização gera distorções perigosas para a sociedade. O inglês John Street, ao referir-se à realidade de seu país, aponta a incompatibilidade estrutural entre a atividade política e o estilo cool que muitos políticos tentam incorporar. Em The celebrity politician — political style and popular culture (2003), o autor afirma que mesmo candidatos da extrema esquerda agora se comportam como estrelas de cinema. E diz que um político jamais poderia ser cool, pois esse é um estilo composto por três traços marcantes: o narcisismo, o hedonismo e um certo desinteresse irônico, e cada um destes traços, quase por definição, representaria praticamente aquilo que um político jamais poderia ser. O estilo cool, como exaltação da vida privada e do individualismo, estaria na contramão dos princípios de interesse público e coletividade, orientadores do exercício da política. Como matriz comportamental das celebridades, o cool acaba forçosamente sendo incorporado pelos atores da classe política, elevando o cinismo de suas representações a um patamar inédito.

sábado, junho 03, 2006

Integridade inócua ou influência corrupta?

Esse é o meu comentário sobre o texto do Gabeira postado abaixo. Nadando no mar de lama do Congresso, ele dá essa esculhambada nos seus colegas de Câmara. Realmente o cara não faz muito, não está presente nas principais articulações e aparece pouco na mídia. Não entrou de cabeça no modus operandi do pragmatismo, do vale-tudo, do apetite insaciável pela influência política. Ao mesmo tempo, não o vemos envolvido em escândalos ou maracutaias. É íntegro, ou pelo menos mais íntegro que a maioria. Há essa minoria parlamentar que vive mais no mundo das idéias do que no da “eficácia”. Entra fundo no debate, e não está ali apenas para angariar emendas ou garantir influência nas Comissões. Talvez seja a função mais nobre do parlamentar — debater, pensar. Não somente negociar a parte “humana” da política, ou seja, conchavos e acordos, mas se debruçar sobre os grandes temas da sociedade, com seriedade, com afinco. Não sei se por coincidência, mas os parlamentares com esse perfil transmitem uma impressão de “outsiders”, “desarticulados”, e às vezes até de “autistas”. Não nomeiam muita gente, não ocupam ministérios, não se envolvem tanto no lodo.
Ganham as eleições com base no voto de gente como nós, uma elite intelectual que, como lembro no meu último texto, vota com base exclusiva no posicionamento político do candidato, sabendo que sua eleição não terá qualquer influência material nas suas vidas. É o voto ideológico, um luxo. A maioria da população vota de acordo com interesses menores, e isso não é culpa dela. Nós não precisamos tanto de pontes ou saneamento; precisamos de exemplos, de gente que tenha uma postura íntegra. Eu votei no Gabeira. Não estou morrendo de alegria ou orgulho por estar divulgando isso aqui. Mas é um cara que dá voz ao segmento de onde venho. Para mim, vale mais votar num deputado que não faz porra nenhuma de concreto — e que tem a hombridade de admitir isso num texto — do que num bandido tocador de obra em comunidades carentes, que desvia dinheiro público para contas no exterior e participa de corrupção de todos os tipos, no fim das contas mais prejudicando que ajudando a comunidade que beneficia com suas obras e esmolas.
A representatividade do Gabeira ilustra a nossa paralisia. Como nós, fica indignado e não consegue se mexer. Mas pelo menos não embarca na euforia pragmática que todos os pecados absolve, em nome de uma conduta cheia de objetividade e ambição. Uma vez comentei com um brasiliense que conheci no Rio que eu gostava do Cristovam Buarque. Ele ficou indignado, disse que ele era um falastrão que não fazia nada, que o Joaquim Roriz (governador do DF, principal adversário de Cristovam) pelo menos fazia obras. Disse a ele que na mídia nacional o Cristovam tinha uma imagem mais positiva que o Roriz, mas que realmente estávamos tendo uma visão ideológica, mais “macro”, e que não estávamos considerando a micro política. Enfim, não dependemos dessas obras, temos um voto elitista, uma visão política mais ampla.
Quando Lula demitiu Cristovam do Ministério da Educação, saiu na imprensa que o presidente teria falado que o ministro “só reclama, só pede dinheiro, só diz que não dá para fazer nada, não resolve nada etc.” Em contrapartida elogiava os ministros práticos, gerentes (Furlan e Roberto Rodrigues, na ocasião, ambos provenientes do empresariado, homens ricos que entraram na política por seu cacife nos negócios), que nos despachos transmitiam segurança, apresentavam os resultados positivos de suas ações e omitiam as dificuldades, fazendo aquele automarketing tão característico do nosso tempo. Isso devia deixar o Lula mais relaxado. É esse tipo de conduta que as empresas querem. O problema é que, ao contrário do que pensa muita gente, governo não é empresa. O intelectual vai problematizar, reclamar, criticar. Por isso não funciona bem em cargos executivos, pois não tem a malícia e o traquejo para costurar aqueles acordões intrincadíssimos que sustentam a manutenção do poder, nem talento para fazer propaganda. Acho que o parlamento é o local certo para esses caras que vão mais fundo na questão política; o intelectual, ou o cara que problematiza, que não está ali só para se locupletar.
Assim, temos que reconhecer que parlamentares como Eduardo Suplicy, Jefferson Péres, Heloísa Helena, Cristovam Buarque e Fernando Gabeira são aqueles que, apesar de tudo, melhor nos representam, chegando a reproduzir no Congresso não apenas a nossa desarticulação e inocuidade, mas também nossa perplexidade e indignação.

Os bandidos na mesa do café

Por Fernando Gabeira

Depois de uma hora de braçadas tranqüilas, saio da piscina e subo numa arquibancada de madeira para tirar a toalha da mochila. Olho para uma edificação baixa de tijolos vermelhos, com uma placa: alameda Paissandu. Diante dela, mesas brancas, cadeiras. Numa delas dorme o gato Amaral. O sacana do Amaral, como o chamamos: gordo, castrado, sonolento, ainda assim faz das suas, encostando-se nas gatas, irritando a torcida do Flamengo, “precisamos acabar com esses gatos no clube”. Nesses momentos de contemplação, nuvens desenhando anéis em torno da estátua do Cristo, sinto uma dor por ter dedicado tantos anos à política, com tão escassos resultados. Invade-me uma vontade de mudar de vida, fazer como o narrador do romance “O Enigma da Chegada” (de V.S. Naipaul), que se retira para o interior e passa apenas a observar e escrever o que está na sua frente. Segunda-feira, auge da crise de violência em São Paulo, parti para Brasília para fazer um discurso de solidariedade e propostas, pensado durante o fim de semana sangrento. Não pude realizá-lo até o fim, embora o plenário estivesse vazio. Minha palavra foi cortada por um presidente ocasional. Ele vem do Norte toda segunda-feira e assume a presidência porque não há ninguém para abrir as sessões. Dá a impressão aos seus eleitores de que é importante, embora já tenha sua prisão preventiva decretada e inúmeros processos. Limitei-me a dizer: “Vossa Excelência é um bandidaço”, embora soubesse que até os insultos seriam usados por ele junto aos eleitores como sinal de importância. A um jornal de Brasília, declarou que aqueles que assistem à TV no seu Estado pensam que é o presidente da Câmara. Ele é desse numeroso e sórdido grupo com que, depois de tantos anos de lutas e sonhos, tenho de conviver no café da Câmara: contas fantasmas, entidades fantasmas, ambulâncias superfaturadas, desvios de verbas no hospital do câncer. A própria luz do Planalto atravessando as vidraças e banhando os flocos de poeira que flutuam nos torna também fantasmas, e você olha a mancha de iogurte na mesa do café, duvida se aquilo não é um ectoplasma desses putos que pintam o cabelo e beliscam a bunda das secretárias. Marcola, o líder do PCC, já leu mais livros do que todos eles juntos; os da minha geração, que tiveram uma base político-militar — não no sentido de terem feito ações armadas, mas por terem curiosidade em relação às leis da guerra —, esses praticamente saíram de cena. Fiquei surpreso ao perguntar por um grande nome do Partido Verde alemão, que surgiu nos anos 60, e soube que, ao deixar o governo, está quase aposentado. Lembrei de tantos outros que se voltaram para suas especialidades acadêmicas, dos que morreram, dos que simplesmente deram uma banana para a idéia de transformar o mundo. De uma certa maneira, foram poupados dessa humilhação que sinto todos os dias ao ver que os bandidos estão triunfando na vida pública, que não só tomaram conta de tudo mas também tomam café ao seu lado, riem para você, falam sobre o tempo e reclamam da dureza da vida política. É uma ilusão pensar que o mundo do crime ignora essas variáveis. Marcola já esteve aqui depondo e, nos poucos minutos que passei pela sala, olhou-me com muita freqüência, como se quisesse dizer: com esse tipo de gente me interrogando jamais sairá outra coisa, além do desprezo recíproco. O mundo que está ruindo aos meus pés é muito desconcertante, pois leva consigo toda uma forma de pensar a política que nos reduz ao ridículo de tentar trazer a guerra urbana de São Paulo para o parlamento e ser interrompido por um idiota que está posando de presidente para seus eleitores do Norte. O mundo que está ruindo nos impõe a humilhação de chamar de Congresso brasileiro um lugar onde os dirigentes da mesa estão mergulhados num escândalo e nem sequer pedem licença para serem investigados, um lugar onde o corregedor, num ano eleitoral, foi o primeiro a ser multado pela Justiça por fazer propaganda fora de tempo. Numa semana tão importante, talvez não devesse enfatizar minhas frustrações. Acontece que não estou sendo humilhado sozinho, nem o está a pequena parcela de deputados honestos.Enquanto não se desvendar o elo entre as quadrilhas que queimam ônibus, metralham policiais, fuzilam inocentes e os bandidos que nos cercam, poucos vão sentir a humilhação que sinto. E quando falo de vínculo não me refiro a advogados, emissários ou mesmo um ou outro deputado que possa estar ligado ao crime organizado. Refiro-me ao plano simbólico tão bem expresso na célebre frase carioca: está tudo dominado. O tudo dominado revela-se não apenas em números mas também em encenações falsas, pequenas omissões, um rígido controle da agenda para que venha à tona o debate dos verdadeiros problemas do país. Aqui as matracas, os “treisoitões”, as bananas de dinamite transfiguram-se em questões de ordem, permita-me um aparte, regimentos internos. Aqui e ali, no Planalto, onde instalamos um governo destinado precisamente a mudar tudo isso e que, no fim das contas, apenas exacerbou o processo, degradando-se e nos degradando. Só penso em aposentadoria quando vejo o Amaral, gordo, castrado e sacana: divagações à beira da piscina. Não rolei tanto barranco para entregar o ouro aos bandidos. Se há uma boa maneira de viver os últimos dias, essa maneira ainda é o combate.

quarta-feira, maio 24, 2006

Meu amigo Nuno Virgílio, jornalista, músico e poeta, escreveu um comentário muito legal sobre o texto "O teatro dos vampiros ", endossando meu ponto de vista. Nuno tem um espaço na Internet onde disponibiliza o seu trabalho, que eu gosto e recomendo. O nome do projeto musical dele é NHA TRANG. Dêem uma conferida quando puderem, sobretudo Tiago e Tony. Aliás, ele está afim de montar uma banda, os detalhes podem ser conferidos na página:

www.tramavirtual.com/nha_trang

O comentário dele está reproduzido abaixo:

"Apesar de as pessoas geralmente classificarem-na como 'ingênua', tenho uma opinião a respeito do assunto muito parecida com a sua: o mundo que criticamos (com seus políticos, suas guerras, sua indiferença pela fome e pelas epidemias) é o reflexo exato das pessoas que somos. Os valores do mundo são os nossos, os homens que compõem o nosso Congresso são carne da nossa carne, apesar de recusarmos isso hipocritamente. É por essas e outras que não me diria desinteressado pela política (continuo fiel à máxima de que somos animais políticos em tudo), mas sim MAIS interessado no que diabos vai dentro do coração das pessoas, no meu coração, lugar de onde saem as verdadeiras toxinas que emporcalham a humanidade e o mundo. Numa avalição pragmática mesmo, meus quase 30 anos de vida me levam a crer que, sem a revolução espiritual e mental que ainda não fizemos, será impossível a revolução histórica que nos levará a uma alternativa melhor que o capitalismo. Pra humanidade que somos, e pelo que carregamos dentro de nós, às vezes eu acho que o capitalismo é o nosso limite, não podemos ir além disso. Ainda somos bichos, os bichos exatos para essa selva. Por isso, como disse Gandhi, não imagino que dê para mudar o mundo pela política se as pessoas não estiverem dispostas a mudar, revendo a vida cretina que levam e sua escala de valores. Valeu pelo texto. Me rendeu fortes reflexões pessoais. Um abraço, cara.

ps.: Apesar disso, há sempre espaço para se notar 'a bela estudante de odontologia de classe média alta do Jardim Botânico', né? rsrsrsrs."


quarta-feira, maio 17, 2006

O teatro dos vampiros

Vivemos um tempo de desesperança política aguda. A crise gerada pelas denúncias de corrupção, um balde de água fria naqueles que esperavam uma mudança na conduta ética do processo político pelas mãos do governo petista, só serviu para incrementar o desinteresse geral pelas eleições desse ano. Tenho ouvido as pessoas dizerem que não sabem em quem vão votar, ou que votarão nulo; e mesmo os mais politizados contam que perderam o interesse e não querem mais saber da política, que os políticos são todos uns ladrões, facínoras, canalhas. Esse tipo de discurso e posicionamento, embora pareça à primeira vista lógico e aceitável, esconde alguns problemas.

Em primeiro lugar, importante ressaltar que esses comentários foram feitos, majoritariamente, por universitários ou integrantes da classe média, que poderíamos forçar a barra e chamar de “elite intelectual”. São pessoas que têm recursos, um padrão de vida confortável se comparado ao do brasileiro médio e, conseqüentemente, a opção de não ter qualquer tipo de ligação partidária, ou de sequer pensar e comentar política. Estão amparados por uma espécie de “proteção econômica” contra esse tipo de envolvimento. São pessoas que podem gerar renda, estar em contato com o mundo globalizado, viajar, ter acesso à informação, ao consumo, à tecnologia, sem que precisem, para isso, pensar um segundo sequer em política. Isso é perfeitamente viável, eu mesmo tenho amigos que vivem nessa condição e conheço muitas pessoas que estufam o peito para dizer que estão indiferentes. É uma postura escorada por um sistema de dominação que vai deslocando o espaço de participação social da cidadania para o consumo. Antes, a noção de pertencimento à sociedade — interesse pela vida pública — se dava pelo exercício das regras abstratas da democracia, do conhecimento dos seus deveres e direitos como cidadão (ainda que utopicamente). Hoje, a participação se dá pela via do consumo privado de bens, baseado no complexo de valores de uma cultura de massas que incentiva a vida privada, a liberdade individual. O sentimento de coletividade parece estar se enfraquecendo, sobretudo entre os muito jovens. Ganhar dinheiro e consumir é o que se espera de um cidadão produtivo e exemplar. Os sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos estão desacreditados, mostrando-se incapazes de assumir a densidade sociocultural do cotidiano.

Mesmo assim, cada cidadão carrega consigo uma micro parcela de poder que é o voto, que será, no dia da eleição, transferida para as mãos do dirigente. Mesmo se alienando completamente do processo, o poder do voto ainda estará consigo para ser usado na eleição. Essa pequena parcela de poder, portanto, será definida, senão por terceiros, como pai, mãe, um amigo etc, pela propaganda, nos moldes do marketing comercial.

Se entre as classes média e alta o espaço da vida das pessoas destinado ao pensar e agir político pode ser inteiramente suprimido — ainda que isso reflita uma ideologia, mesmo que inconsciente —, o mesmo não acontece nas regiões mais pobres. Quanto mais uma localidade é desprovida de proteção estatal, mais a política se torna aparente, assim como seus vínculos e conflitos. Nessas localidades, as pessoas muitas vezes só sobrevivem sustentadas pelas redes da solidariedade ou da criminalidade. Redes que, se não têm suas próprias lideranças, obrigatoriamente precisam se relacionar com as lideranças locais. Isso significa dizer que, se uma bela estudante de odontologia de classe média alta do Jardim Botânico comentou comigo que Lula estava disputando a prefeitura do Rio, dificilmente um jovem favelado não saberá dizer o nome do traficante que comanda o morro em que reside.

Costumamos torcer o nariz quando vemos esse jovem vestindo a camiseta do político corrupto; agitando sua bandeira no sinal, distribuindo os santinhos, vendendo aquele pilantra como venderia paçoca dentro de um ônibus. Mas é preciso lembrar que ele está sendo pago, precisa daquilo, e sim, vestirá a camisa. Nós, da classe média, podemos ficar livres desse terrível constrangimento. Nas comunidades de baixa renda, as eleições interferem muito mais na rotina de seus moradores. Muitas vezes a eleição de determinado candidato influirá materialmente nas suas vidas: ele construirá a ponte que os ajudará a economizar tempo para ir trabalhar; fará o saneamento na sua casa etc. O que nosso deputado faz por nós? Até que ponto nos sentimos representados, ou sentimos falta dele? É praticamente uma entidade abstrata. Nós, como parte de uma minoria intelectualizada, escolhemos nosso candidato pelo simples posicionamento político dele, por suas idéias e posturas.

Nossa “independência”, ou liberdade de não envolvimento, ou ainda o nosso descolamento da realidade política, é paga, seja pelos nossos pais, por nós mesmos ou por uma ordem estamental pré-estabelecida. Podemos ter esse ar blasé com a política; é válido, agrada à maioria, é simples de ser lembrado e expressado, e o principal: encerra o assunto. Tudo é uma merda, ninguém presta, vamos falar de futebol. A escolha de jamais se comprometer é tentadora: dá ao sujeito segurança, liberdade para criticar tudo e ainda o faz parecer antenado, consciente e preocupado.

O destino da massa de votos alienados da classe média da Zona Sul, por exemplo, sobretudo dos mais jovens, reflete a tendência que localizamos no início, de deslocamento da cidadania para o consumo. A transferência da cena política para os meios eletrônicos acentua o que ela tem de mais apolítico. No seu jogo de simulacros, não se parecer com um político é característica comum a muitos líderes: é preciso parecer “descolado” da política. Eficiência administrativa, gerência produtiva: o marketing incorpora os postulados dos livros de administração e negócios às campanhas. “Não há tempo para se debater pressupostos ideológicos, isso é coisa do passado. É preciso trabalhar, fazer obras.” Os discursos do marketing são simplistas e ignoram a complexidade das sociedades modernas; compõem, eles próprios, uma ideologia, ainda que isso nunca seja assumido. O posicionamento ideológico, embora minimizado, é importante porque indica as prioridades de um governo, ou seja, a “semente” que estará sendo plantada. O prefeito Cesar Maia, por exemplo, soube incorporar a tendência de tecnoburocratização dos governos neoliberais com sucesso, credenciando-se como “grande administrador”, o que lhe rendeu praticamente quatro mandatos na prefeitura do Rio, um recorde significativo.

É mais fácil criticar que fazer. Ao não se envolver num processo, você fica mais à vontade para criticar. Por isso, é normal que o intelectual, e também o artista, optem por não ter ligação partidária, para que possam manter sua liberdade de expressão e isenção opinativa. Embora isso seja saudável, o mundo não pode ser governado por intelectuais ou artistas não comprometidos. Alguém tem de vestir a camisa, alguém tem de se comprometer. Alguém tem que ser governo, e defender o governo. Não é fácil convencer uma pessoa que militou a vida toda por uma causa, seja ela qual for, que admita, publicamente, que tudo que fez foi inútil, que foi engolida pelo sistema, que a dureza da arena política a transformou numa merda de pessoa. Porque a vida daquela pessoa se confunde com a sua própria trajetória política, é quase uma coisa só.

Os argumentos apresentados aqui jamais seriam admitidos numa tese acadêmica, fosse ela de comunicação social, direito ou ciência política. A academia, quando estuda a política, não usa esse tipo de enfoque. Como não estou escrevendo uma tese, vou em frente. O poder é um espaço essencialmente apodrecido, degradado, vilanesco. Vive sob o estado de tensão da guerra. Não lembro de quem é a frase, mas é uma boa máxima: “a política é a extensão da guerra, e a guerra é a extensão da política.” É coisa para quem tem estômago, e sempre foi, desde os primórdios. É a subjugação do homem pelo homem, é a fome de um e a fortuna do outro. Antes de virar uma guerra física e sangrenta, vai ser uma guerra de papéis, de burocracia, de discursos, de argumentos, de idéias, de busca de consensos. Essa parte é fascinante, mas não deixa de ser uma guerra.

Os salões do poder, apesar do luxo e das aparências, devem ser quase tão carregados de fluxos negativos e más consciências quanto os de uma penitenciária. Mesmo os líderes honestos e lutadores, que existem, sem dúvida (embora possamos contá-los nos dedos), quando trabalham por causas nobres, trabalham na lama. Mesmo o mais digno e probo dos políticos, quando trabalha, quando negocia, quando discursa, o faz entre víboras, na lama imunda do que há de pior no espírito humano. Um pântano de genocídios, injustiças, corrupção, violência de todos os tipos. O problema é que quem trabalha na lama se suja nela. Quando pintamos um apartamento, mesmo tomando cuidado, acabamos nos sujando bastante. Acontece o mesmo no ambiente do poder. Para operar na política, é necessário se movimentar como uma sombra na zona cinzenta dos bastidores. Se há outras maneiras de colaborar com a sociedade, de lutar pelo interesse público? Estou certo de que há. No entanto, é preciso reconhecer que se engajar numa causa e vestir uma camisa, para trabalhar na lama entre as cobras, não é algo propriamente sedutor. Trocar um dia de sol e programas culturais por uma seqüência interminável de reuniões burocráticas, fogueiras de vaidades e ressentimentos, não anima muita gente. Portanto, antes de dizer que são todos uns filhos-das-putas, é preciso atentar que para cada cacique com contas milionárias no exterior há uma legião de militantes, de gente utópica ou mal intencionada, não importa, mas que se expõe, arregaça as mangas, não tem medo do ridículo, e dá expediente no lodo, e sacrifica a vida pessoal em tempos de euforia com a vida privada. É preciso estar atento para as bases organizadas, majoritariamente compostas por pessoas humildes. Por mais esquisito que possa parecer, há uma beleza desconcertante nelas. Essa beleza já foi maior, nos tempos do esquerdismo revolucionário que caducou, mas ainda existe. Quem assistiu Os Peões, o documentário de Eduardo Coutinho, sabe do que estou falando.

Essa é também uma face da política. Grupos se organizando, desorganizados. Massas acreditando em discursos, em plataformas — embora cada dia mais o consenso esteja sendo obtido de maneira apática, com a racionalidade suplantada pelo apelo irracional do marketing — e indo à luta, pelo coletivo, atrás de mitos condensados a partir da convergência de anseios por dias melhores.

Os políticos são pessoas como nós, com os mesmos valores que nós. A diferença é que são comprometidos com um projeto, e por isso não podem ter a nossa liberdade crítica. Muito fácil ser moralizador e limpo quando se está longe da lama. O poder é lama. Quem pega o poder pega na lama, quem pega na lama se suja. Infelizmente é assim. Os valores que geram isso são os nossos. Tudo começa na escola. Alunos estimulados a competir — o ápice é o vestibular; nem sinal do ensino de matérias como ética, moral ou filosofia, talvez um sinal de rancor e oposição aos tempos de totalitarismo e doutrinamentos ideológicos. No lugar do ensinamento das virtudes, matérias técnicas e específicas. Artistas sofrendo com intrincadas equações estequiométricas, comerciantes penando com poesia modernista, e um catálogo de equívocos sendo escrito desde cedo.

A seguir, ser correto, fazer parte de uma organização empresarial ou burocrática, sem questionar nada, ser bonzinho, se sacrificar pelo empregador para poder usufruir o “pacotão da felicidade”, composto da patroa, dos bonecos e dos objetos, que cada vez mais se distanciam de sua funcionalidade e se aproximam de símbolos. O rapazinho cresce rápido, com vinte e três já é um homenzinho, tem sua casinha, seu carrinho, e o direito de fazer compras em lugares longínquos. É precoce, não quebra a cara, só vai na certa. Mas se torna um adulto infantilizado, boboca, propenso a consumir futilidades e aderir a qualquer modismo, por mais estúpido que possa ser; ter objetos cada vez mais sofisticados é o grande barato desse humanóide, que, apesar de tudo, jamais se satisfaz com nada, porque a ideologia de lazer que incorporou depende do desejo, e o desejo deseja desejo, e não satisfação. Com pessoas satisfeitas o capitalismo iria à bancarrota. A morte e a velhice viram tabu, embora impulsionem inconscientemente uma gigantesca indústria de medo e insatisfação. As pessoas passam a ter valor de mercado e o mundo vai ficando essa bosta... Nem vou falar dos efeitos terríveis desse modelo sobre a sexualidade. Um sistema social fundado na engenharia social, o dinheiro deixando de ser meio para ser fim, o consumo forçando a barra como alimento da alma, a exaltação da vida privada e do individualismo, nenhuma reflexividade, posicionamento crítico confundido com mau-humor, imbecilização generalizada, ganância e sonhos narcisistas gerando muito sofrimento e desilusão, e tome anti-depressivos e drogas sintéticas para segurar a onda da galera... Por que esse desabafo? O que isso tudo tem a ver com o que eu estava falando? Para tentar mostrar que os valores da nossa sociedade se extrapolam na política partidária.

O que lhes parece mais repugnante? Mexer na lama e se sujar, ou agir com o autismo e o descaramento com que uma certa parcela da burguesia, beneficiária do sistema, finge se engajar pela causa pública? A classe burguesa é hipócrita, mesquinha, morre de medo de ficar pobre. Pendura aqueles cartazes ridículos do “Basta!” nas varandas dos seus apartamentos de um andar com vista para a Lagoa, achando que está transgredindo limites. Depois, as mesmas peruas se enchem de penduricalhos, se cobrem de grifes européias, exageram no perfume e vão comentar em jantares cafonas quem está ganhando dinheiro, quem está com câncer, quem está transando com gente da idade dos filhos, e como sentem vergonha do Lula e da Dona Marisa.

Todo o cinismo, mesquinharia e egoísmo que praticamos na vida, sobretudo na profissional, se exacerba no espetáculo da política. Assim, o mundo dela fica parecendo diferente do nosso, mas não é. Só é mais exagerado e mais caricato, porque acontece em dimensões maiores e mais sérias e é registrado espetacularmente pelo olho ubíquo da mídia. As indicações, os conchavos, a teia de contatos, a prevalência do interesse privado em detrimento do público, o DINHEIRO, está tudo entre nós. Esse é o nosso mundo. O que é demais nunca é o bastante, e a primeira vez sempre parece ser a última chance.

Competição, encenação, vazio mental e espiritual, hedonismo, fraqueza, sonhos inalcançáveis e inveja. Medo, muito medo. Eis o capitalismo, a alternativa mais primitiva de modelo social. Alguém sugere outra? Quem souber pode fundar um partido e tentar fazer castelos na lama.

segunda-feira, maio 08, 2006

A construção da imagem pública na era do marketing eleitoral

Luiz Inácio Lula da Silva foi o rendido da vez à desanimada constatação de que tudo depende do jogo da micropolítica ou do modelo econômico em voga, dos acordos de bastidores, das leis não aprovadas pelo Congresso Nacional, do apoio a determinados grupos, da repressão a outros, da incompreensão do cidadão médio e da oposição cega que tudo critica. Como tantos outros, sente-se autoconformado e governa auto-satisfeito, não com os resultados obtidos, mas sim com o esforço despendido para alcançá-los. A relação esforço-resultado é medíocre, mas tampouco sabe como melhorá-la. Assim, sucedem-se os dirigentes enquanto os problemas crescem e permanecem, junto com as frustrações. O cidadão comum suprime a informação negativa e esquece a política, que permanece concentrada em grupelhos.
O cenário degradado é composto por vários partidos pequenos disputando os nacos de poder deixados pelos grandes, tecendo uma rebuscada teia regida pela mais predatória competitividade interna. O jogo de alianças, impossível do ponto de vista ideológico, doutrinário ou programático, é perfeitamente viável sob o olhar do real, do presente. A ideologia partidária é o capitalismo puro e amoral, o resto são rótulos, grifes, invólucros para o consumo da massa desorientada. Socialista, social-democrata, liberal, trabalhista — são conceitos cuja significação só pode ser decodificada na simultaneidade da comunidade virtual da informação e do campo estético publicitário, inexistentes na realidade sensível. Cada partido funciona como uma equipe, uma empresa, que faz negócio com outras equipes, no apetite voraz das comissões astronômicas que ganham em cima dos negócios que circulam pelas altas esferas do poder. Embora seja um fenômeno generalizado no mundo ocidental, como nos lembra Muniz Sodré, é mais agudo em regiões como a América Latina, onde “predomina o sistema partidário que os especialistas chamam de ‘não consolidado’, isto é, instável e sem vínculos profundos com a vida social, com estrutura indiferente ao território e cada vez mais burocraticamente voltada para a sua auto-reprodução”.
Suas bandeiras são vazias de significados, causas ou ideais. A fatalidade capitalista sugou esses conteúdos e deixou somente a forma, a moldura do que um dia pode ter sido uma luta. Ficou apenas a logomarca, a propriedade do discurso, as imagens associativas ao passado em que essas bandeiras ainda faziam algum sentido.
A classe política pratica corretagem com o patrimônio público. Ganha gordas comissões, suficientes para que seus operadores tenham suas fazendas, empresas e fortunas — às vezes até um helicóptero para dar um status — e não precisem gastar um tostão do seu dinheiro no financiamento das campanhas milionárias. A parte mais expressiva do montante fabuloso que é pilhado, no entanto, vai para outras mãos. São os donos do capital, nacional ou estrangeiro — a quem o político serve de vassalo —, que se apropriam da parcela mais substancial da riqueza brasileira. Os partidos são “escritórios” onde acontece a intermediação para a realização do negócio. Com fontes privilegiadas e quadros influentes, abrirão o caminho institucional para o escoamento do patrimônio público para os cofres dos grandes capitalistas.
O mundo da política não pode ter sua natureza dissociada da imoralidade e visceralidade que constituem essencialmente a luta pelo poder. Operado por homens, nesse âmbito predominam as limitações, vícios e fraquezas próprias da criatura humana, que em confronto com o modelo idealizado transforma a política numa eterna fonte de frustrações.
A política real, das relações concretas de poder, possui a mesma irracionalidade do homem, refletindo em maior escala sua mecânica falha e corrompida. A zona cinzenta sob a qual se realiza sua parte operacional encobre disputas entre pessoas, com todo o labirinto de incoerências, vaidade e paixões das relações humanas.
O livro “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque, modula minuciosamente uma certa matriz da imaginação política e histórica brasileira. Essa matriz percebe, na nossa formação social, certas características indicadoras de uma determinada concepção de vida política: a precedência dos afetos e do imediatismo emocional sobre a rigorosa impessoalidade dos princípios que organizam a vida do indivíduo no âmbito público; a conseqüente prevalência da esfera privada invadindo, sem nenhuma cerimônia, o espaço público.
A sociedade brasileira confirma sua crença no caráter aparentemente harmônico da esfera privada, refugiando-se no seu interior mediante um sistema de relacionamentos entre indivíduos interessados, um sistema paralelo à cena pública e sustentado por contatos pessoais.
Na definição da maioria dos intérpretes da brasilidade, como Sérgio Buarque, Roberto da Matta e Paulo Prado, são características marcantes da cultura brasileira: a preguiça, a imprevidência, a inclinação para o desvio da lei geral, a retórica, o culto às aparências e às exterioridades e, acima de tudo, o talento para passar a perna no outro em proveito próprio. Impossível fazer a dissociação entre essas características e a prática política, na qual as relações privadas dão o tom e dominam o cenário mesmo no âmbito público. O pragmatismo dos bastidores da política esmaga todas as ideologias.
A porta de entrada para o ambiente da política real é a eleição, que nas sociedades modernas passa a determinar todo o andamento do processo político. Tudo gira em torno do eleitoral e é praticado no intuito de produzir determinado efeito no bios midiático da opinião pública, esfera de onde o eleitor extrai toda informação que orientará sua atitude de voto. A mídia e a propaganda, como canais de comunicação entre a mensagem política e o imaginário social popular, se utilizam basicamente de códigos na montagem de seu domínio no campo estético, a partir da superposição de diferentes efeitos extraídos de diferentes tempos e espaços, na criação de um efeito simultâneo. Segundo Kátia Mendonça, “explorar a simultaneidade não é, porém, privativo apenas da esfera estética, mas, na medida em que o campo das relações de poder se estetiza, passa a ser também um recurso na manipulação do imaginário político, não apenas presente nas manifestações inconscientes do passado na constelação arquetipal, mas deliberado instrumento na fabricação de heróis e ídolos políticos.”
O marketing eleitoral tem participação no empobrecimento da discussão política, ao promover um tratamento superficial e simplório do processo político. Negando o fator ideológico, seus adeptos negam o componente de confronto, a luta eterna que é política, logo eles, que dominam a produção e a transmissão dos signos estéticos nos meandros pouco conhecidos do psiquismo humano. Feudo do poder, atraído pelo magnetismo inebriante do capital, é um organismo político fundamental, dominado pela tendência apolítica de gerenciamento consensual na qual se funda a última versão do capitalismo globalizado. O marketing eleitoral vive da política, mas suprime-a do campo de visibilidade pública. Sua atuação política é deixar o mundo da política estéril e apolítico, como um mero apêndice empresarial regido pelas leis de mercado. Acessório do capital, age em nome dele defendendo sua dominação não só em termos práticos, como também na doutrina.
O marketing, ao invés de realçar as qualidades do produto e suavizar os defeitos, desempenha a função de transformá-lo aos olhos da opinião pública, alterando concretamente a sociedade, chegando ao extremo de forjar a inversão, confeccionando o antagonismo máximo entre o real e a projeção do real. Nesse ponto a inversão dos valores chega na situação extrema de contraste, entre o que se espera de uma instituição política à luz da racionalidade ética, e do que é praticado na realidade: um banditismo sórdido, explícito, instrumentalizado por gângsteres e ladrões. A mentira e a farsa são a sombra das imagens arquitetadas pelo marketing político. Através desse espelho de imagens assépticas, descartáveis e imediatas, a obscuridade domina o outro lado, o da realidade. O mundo de algodão-doce da propaganda incorpora o que há de mais lógico e edificante no imaginário da atividade política. Justiça, seriedade e probidade no trato da coisa pública são conceitos abstratos, que reinam no mundo onírico criado pelos marqueteiros exatamente por não fazerem parte do mundo material. A força dos ideais no mundo mental reforça a escassez deles no plano real. O modelo estético-publicitário predominante no espaço virtual das mídias, segundo Maria Helena Weber, “espelha somente a positividade, nunca aparece a negação, a reação, o conflito, o choque, a rejeição, a destruição: o mundo é arranjado de forma a que nos signos apareça somente a imagem de felicidade forjada, que funciona como substituto do real, carregado de frustrações e insatisfações.”
Desta supressão dos elementos reais que compõem o mosaico da política é gerada a impressão de artificialidade e estranhamento que o discurso político adquire na mídia e na propaganda; vago, sem vida, mecânico. Lembro-me que em 2002, no período pré-eleitoral, eu voltava de uma viagem, e do caminho do aeroporto até minha casa era impossível não notar o desfile de outdoors gigantescos, ocupando lados inteiros de altos edifícios, como estátuas erigidas para seus representantes, estampando os rostos vincados dos políticos fluminenses, cujos sorrisos forçados e maquiagem excessiva davam-lhes uma expressão macabra, transfigurada pela aura de vilania que transcende ao mascaramento. Imagens estéreis de quem já mostrou a que veio há muito tempo, como Moreira Franco, Roberto Jefferson, Jorge Picciani, Rubem Medina, Sérgio Cabral Filho, Márcio Fortes e tantos outros integrantes da velhacaria política do nosso estado, com seus slogans fantasiosos e atrevidos, que parecem tripudiar da inteligência do público, apresentando-os como heróis ou agradáveis novidades. Canclini nos lembra que “os políticos que compreenderam nas últimas décadas a importância de administrar suas imagens nos meios de comunicação de massa manejam a idéia de cultura como se fossem líderes do século XIX, para os quais a forma mais cabal de consagração era a escultura em bronze”.
Em síntese, o profissional de marketing eleitoral não vê qualquer impedimento ou constrangimento em vender pulhas como heróis. Muito pelo contrário, vangloria-se com a dificuldade crescente dos desafios e das cifras que lhe aparecem, e suas maquiagens tornam-se cada vez mais impressionantes na proporção em que crescem seu estímulo e seu poder. Quanto maior a dificuldade na confecção da máscara, mais cheia de brio fica essa nova estrela, especialista na arte de fabricar a verdade, industrializar sonhos e esperanças às custas da ignorância, lucrando com a miséria, o analfabetismo e a insustentável estrutura estamental-patrimonialista do Estado. Transforma o candidato no seu inverso, de onde concluímos que a matéria-prima do marketing eleitoral é a farsa. A atividade presta um desserviço ao país ao atuar sobre o imaginário do povo de maneira ignóbil e irresponsável, sempre a reverberar mentira e frustração.
A imoralidade estrutural da política contamina o marqueteiro, que passa a comportar-se como um político profissional, com a diferença de nem precisar criar para si um projeto ou um programa de governo; abstrações que serão forjadas e vendidas para os aspirantes que pagarem melhor. É a função dessa nova modalidade de político, detentor do know how da venda de candidatos, a partir de um entendimento da realidade brasileira condicionado pelo olhar tecnocrático e distante que as elites sul-americanas forçosamente mimetizam do pensamento liberal das economias do primeiro mundo. Esses profissionais possuem espaço para interferir até nas plataformas partidárias, selecionando os temas ou palavras de ordem de maior peso mercadológico.
Questionamos a não ambição dos profissionais de marketing eleitoral, a total ausência da utopia de transformar positivamente o sistema no qual atuam com tanta intensidade, crítica que se estende a todos os que crêem de forma quase messiânica na inevitabilidade do caminho pelo qual o liberalismo econômico conduz a humanidade. A escolha de lucrar com a indignidade do povo e valer-se de dogmas para justificar realidade tão terrivelmente cruel e injusta é mais tentadora, pois possibilita a concretização da fantasia narcisista que nossa sociedade de espelhos alimenta com tanta voracidade.
A política só vai se transformar quando o homem mudar, sendo capaz de sustentar na prática o exercício das virtudes, estas que só existem mentalmente, e se manifestam virtualmente nos discursos e na composição da imagem refletida no espelho midiático. Enquanto auto-crítica for confundida com incompetência e fraqueza, e não for construída uma cultura ativa de crítica e consciência política, o mesmo estará eternamente indo e vindo na diversidade de suas embalagens mercadológicas.
A política real é eterna e imutável. Nunca mudará; feita pelos homens, incorpora a visceralidade e os defeitos da natureza humana. A pulsão vital de permanecer e enfrentar o tempo e a morte é explicitada pelo poder, que possui a faculdade de transcender a existência material. As instituições políticas resistem ao tempo e à morte, mas seus integrantes perecem, enquanto o espírito do poder salta de um corpo para outro. Sendo essa situação irreversível, nós jornalistas, e também os publicitários e proprietários dos veículos de comunicação, deveríamos nos focar na melhoria do conteúdo político divulgado pela mídia. Como peças importantes dessa mecânica, a imprensa e as agências de publicidade gravitam em torno do capital e fazem a fábrica de sonhos funcionar a todo vapor. Tendência destrutiva que fica visível na propaganda política, onde candidatos mentem descaradamente e apresentam-se como pessoas dotadas da mais absoluta infalibilidade. A imagem da política projetada no espelho midiático deveria ser construída sob uma base de correspondência mais efetiva com a vida real, o que não é impossível; ao menos parece mais fácil do que transformar a realidade política. Muito do jornalismo parece produzido para ser consumido apenas por jornalistas. Especulações sobre candidaturas, disputas partidárias internas, o disse-me-disse, isso só interessa de fato aos políticos, aos jornalistas e aos interessados ou estudiosos. Parte significativa do público, a larga maioria, por exemplo, não se interessou pela briga interna entre o prefeito e o governador de São Paulo pela indicação do PSDB do candidato à presidência da República que enfrentará Lula. O espaço dado ao caso na mídia foi expressivo. Claro que o assunto é importante para o analista político, para a história — como disse Schopenhauer, a imprensa é o ponteiro dos segundos do relógio da história —, mas não tem muita utilidade pública, é elitista demais. A mídia poderia buscar um modelo que equilibrasse a cobertura da movimentação do xadrez do poder no andar de cima com um enfoque mais próximo do cotidiano do homem comum. Essa aproximação não se daria apenas com informações sobre serviços de utilidade pública, mas a partir de um olhar que não se limitasse às picuinhas partidárias. A dificuldade é que esse tipo de tratamento esbarra essencialmente nos princípios comerciais que regem a imprensa: simplificação, enfoque espetacular, sensacionalismo, tudo o que facilita o consumo imediato da notícia. Trabalhar por mudanças nesse formato já é algo em que podemos tentar nos engajar. Transferindo um pouco mais da degradação da política real para a esfera da sua projeção midiática, estaremos dando um passo em direção à diminuição da corrupção e do descaramento da classe dirigente brasileira, que não pode continuar construindo suas imagens públicas como peças ficcionais.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Meu amigo Pedro Roberto Nunes, economista com mestrado na USP, me enviou seu relevante comentário sobre o artigo "Supremacia eleitoral":

"Há modelos econômicos que tratam de atos ilícitos na política, sob democracia e sob ditadura. Na ditadura, existe um grupo interessado em que as coisas funcionem, com muito poder e, a princípio, tempo. Com isso, esse grupo acaba por limitar a ilegalidade da ação de agentes políticos, pois todos os demais são, pela força, subordinados. Na democracia, gasta-se tanta energia na fase eleitoral, que é preciso passar o período do poder lavando as feridas. A livre concorrência política leva a mais desperdício de recursos, e não a menos, porque cada partido funciona no limite da sua capacidade financeira e política, e como no futebol nacional, o time só se paga inteiramente se vencer alguns campeonatos. Ah, outra coisa: a grande fragmentação partidária barateia o custo da compra de votos. É fácil comprar votos quando existem muitos partidos que os vendem, e é preciso apenas mais alguns para ganhar maioria. Mas quando você precisa de muitos, já não é tão vantajoso. Mudando um pouco o foco, testes empíricos mostram que as obras influenciam mais na política local que na regional e muito pouco na nacional. Além disso, pesquisas mostram que o eleitor confunde quem fez as obras, mesmo com o marketing forte em cima delas. Não é uma estratégia tão funcional assim, mas acho que ainda é uma das poucas. Esse negócio de usar a educação pra fazer a diferença é uma faca de dois legumes. Pode ser usado para, por exemplo, dizer que um certo país é nosso inimigo (como os EUA fazem). Mas claro que é uma ferramenta poderosa."

O PT na zona cinzenta do realismo político

Relembramos o furor causado pelo artigo publicado na Folha de São Paulo pelo filósofo do Cebrap, José Arthur Gianotti, onde afirmou que a lógica do poder abrigaria uma “zona cinzenta”, espaço onde cessariam as obrigações em nome de uma aparência de moralidade e prevaleceria o realismo político. Cobrar ética do governante seria impugná-lo como ator político, já que a única maneira de sobreviver na complexa, traiçoeira e ultra competitiva teia da política seria através do mais alto grau de pragmatismo, aplicado no agir profissionalizado cuja margem de manobra necessária ao seu exercício extrapolaria os limites éticos socialmente convencionados.
Nos palanques prevalecerá a racionalidade discursiva em torno da idéia do interesse público, enquanto nos bastidores veremos o predomínio da racionalidade fria e objetiva do gerenciamento empresarial, mesclada com a vaidade dos projetos pessoais de poder e as intrincadas estruturas de relacionamento inter pessoal de seus personagens. Gianotti foi criticado, principalmente pelos petistas (na época do governo tucano), acusado de defender uma leitura instrumental e distorcida das reflexões de Maquiavel.
Maquiavel partiu da realidade, e não da utopia: o fazer político fundado na condição humana tal qual ela é, e não como gostaríamos que fosse. É nessa base lógica que funciona a política real, a micro política, tão antiga quanto o homem, imutável e eterna; baseada nas trocas e negociações que permitem a sobrevivência de seus atores. O PT, enquanto partido de oposição, procurou, com muita competência, colar-se à indignação da opinião pública em relação ao “baixo maquiavelismo” dominante na prática política brasileira. Assim conquistou o monopólio da ética, o grande diferencial em relação aos demais partidos, de que tanto se gabou. O exercício da oposição pelo PT lhe dava uma aura de pureza. Sua política era toda baseada no discurso, nas abstrações ideológicas, nas palavras de ordem por justiça social e mudança. Era a política intelectualizada que brilhava nos debates públicos e inflamava tribunas e palanques com sua inquietação e persistência em torno da idéia de transformar uma ordem secularmente estabelecida.
O PT conquistou um patrimônio de transparência e conseguiu associar-se com êxito aos princípios éticos e à “verdade dos fatos”. A estrela vermelha brilhou na mesma intensidade com que as lideranças do partido construíram imagens públicas diferenciadas. Na presidência da República, deparou-se com uma lógica de exercício contrária a da oposição, descaracterizando-se e deixando perplexa uma boa parte de seus eleitores e ideólogos. O partido rachou, e uma súbita inversão de papéis foi acompanhada com desânimo pelos que votaram no partido, e com alívio pelos que votaram contra, que passaram a ter uma visão positiva do governo pelo o que ele não realizou.
A lógica do poder é diferente da lógica oposicionista. Há um conservadorismo intrínseco à administração da máquina e seus recursos, na distribuição de cargos entre seus aliados, na composição contraditória de suas alianças, no controle de sua base parlamentar, na espinhosa missão de representação da complexa pluralidade brasileira. Uma vez no governo, o radicalismo da oposição é substituído pela moderação. O inflamado tom político das cobranças nos discursos é trocado pelo tom técnico, frio e burocrático da prestação de contas e da divulgação estatística das realizações governamentais. A retórica discursiva da oposição é trocada pela clareza simplificada e arrogante do discurso governista. O sonho e a projeção cedem lugar ao aqui e ao agora, a ação realista e pragmática da direita invade o espaço dos enunciados utópicos dos programas esquerdistas. A incitação à revolta cede lugar ao apaziguamento e a tranqüilização no presente. O futuro temível pintado pela oposição é anunciado pela situação de modo definido e aceitável. São características próprias às instâncias de governo e oposição. No governo predomina uma ótica própria do pensamento identificado com a direita — as direitas historicamente sempre foram governo —, enquanto a oposição norteia-se por princípios políticos, tanto em forma de ação quanto no conteúdo de suas proposições, relacionados ao que se designa vulgarmente como o pensamento de esquerda. Isso até o PT chegar ao governo federal, tendo como oposicionistas partidos como o PFL, e aliados como o ultra conservador PP.
Da troca de papéis pelos atores políticos decorreu o patético circo de incoerências que expôs as grandes deficiências de um sistema político onde as máscaras mal conseguem disfarçar a fragilidade dos discursos sustentados pelos seus personagens.
Assistimos com mau humor a encenações desajeitadas e toda sorte de galhofas: o senador Jorge Bornhausen bradando da tribuna pelo aumento do salário mínimo; o vice-presidente do Senado, Paulo Paim, votando encabulado, com o governo, pela aprovação da reforma da previdência, depois de ter esperneado a vida inteira contra ela. Importante salientar que o nível a que chegou esse ridículo teatro é tão lamentável que seus atores nem se dão ao trabalho de forjar uma tradução, ou adequação de seus discursos à nova realidade. O embate de idéias parece ser travado por crianças, tamanha a falta de bom senso e o apelo raso dos argumentos. Quem era governo e virou oposição adotou o discurso pasteurizado de esquerda do PT, sem qualquer preocupação com a coerência, desconsiderando um passado de dura militância contra exatamente tudo aquilo que passou a defender. O PT no governo, por sua vez, fala nos mesmos termos em que o PFL e o PSDB falavam há cinco anos atrás, exatamente o mesmo discurso. O problema é que já tendo cristalizado no imaginário político sua aura esquerdista de ética e transparência em anos de oposição sistemática, chocou seus eleitores ao revelar-se dotado da mesma imoralidade constitutiva de todos os organismos partidários. Sem ser ensaiada, a troca grosseira de papéis culminou na terrível crise política que afundou o PT na lama da corrupção e expôs as mazelas de um sistema político aleijado e cruel. O PSDB não escapou, com a lama respingada no então presidente do partido, o senador mineiro Eduardo Azeredo (Minas é o epicentro da crise), que recebeu recursos do “valerioduto” e praticou “caixa dois”, atividade que se fosse punida provocaria o fechamento do Congresso. As entranhas da estrutura partidária brasileira ficaram expostas com a crise, e o PT pôde finalmente compreender o que Gianotti queria dizer quando falava em zona cinzenta. Quando teve que negociar e compor com o PTB de Roberto Jefferson, o PL do bispo Rodrigues, o PP de Severino Cavalcanti e José Janene, o PT perdeu a inocência e descobriu o outro lado da moeda da utopia política, os meandros obscuros do poder.

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